Querido Deus, não me deixe esquecer, por favor

Querido Deus, meu amigo, professor, mestre, companheiro desta imensa viagem que venho percorrendo há milhares de anos.
Por favor, meu Paizinho, não me deixa esquecer de quem sou.
Não permita que eu me perca nas relações familiares baseadas na velha energia, onde a posse, a inveja, o orgulho, as mágoas e as intrigas minam os campos do coração e espalham espinhos onde antes haviam sementes de flores.
Não deixe que eu me anestesie pelas paixões da Terra que vedam os olhos e transformam ogros em príncipes. Acorda meus ouvidos e grite dentro deles que a ilusão pode vir vestida em trajes de baile.
Abra meus olhos e se for preciso esfrega neles algum alvejante para que eu veja aquilo que vejo com minha intuição e não me engane mais com a perfumaria emocional. Que eu sinta o cheiro podre dos esgotos por onde andamos e que saiba encontrar o canal de fuga que leva à luz da superfície outra vez.
Corta meus pés se eles teimarem em caminhar com o bando de carneiros mansos pela surdez, cegos pela ignorância do pequeno poder da Terra e arranca do meu coração qualquer arrogância e prepotência.
Apaga da minha lousa mental os enganos que escrevi; eu não sabia que eles eram tão danosos.
Traz de volta para a minha alma o canto dos meninos índios, a dança das sacerdotisas, a alegria dos chocalhos recheados de sementes. Faz-me ser inocente outra vez. Arranca-me deste mundo de falsas fantasias. Já aprendi que as lantejoulas são de plástico e que não brilham como as estrelas.
Meu Paizinho querido, não me deixe esquecer das coisas que eu já descobri. Não me deixe repetir as cenas que eu já encenei e nas quais não gostei da minha atuação. Tire-me desta produção alucinante e me devolva o mapa da floresta onde eu possa encontrar rios limpos, onde eu não tropece em embalagens amassadas de sabão em pó, em pacotes vazios de bolachas, onde eu possa colher da árvore uma fruta que não tenha sido envenenada por pesticidas.
Meu Deus, não me deixe esquecer de quem sou. Desperte meu espírito, dê voz a ele e me ajude a encontrar um pedaço de terra onde eu possa simplesmente descansar em silêncio.

Izabel Telles